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A angústia e a impermanência. Um texto aberto sobre um ciclo que se encerra.

 

Hoje reparei que o cacto da foto estava murcho, por falta da água e luz necessárias pra sua sobrevivência. E cactos, na natureza, sobrevivem anos em períodos de seca, desde que haja sol. Nada em demasia, nem a água, nem o sol. Como todos os seres vivos, dependem de um ambiente suficientemente bom, como diria Winnicott. Mas este, em específico, plantado em um vasinho de cimento, fora de seu habitat natural, é depende de cuidado humano para sobreviver. E isso me fez pensar que, diferente dos cactos, as pessoas não devem delegar seu cuidado a outras, assim como não podem ser responsáveis por fazê-lo pelas anteriores. Cada um tem a capacidade de se nutrir, em alguma medida, desde que esteja disposta a olhar e acolher suas insuficiências, num movimento contínuo de construção-desconstrução-reconstrução. A saúde, sinônimo de crescimento, talvez se aproxime mais do movimento da procura do que da estabilidade da certeza do encontro.

Por isso dou mais importância ás boas perguntas que me movem do que as respostas que acredito ter.

A vida humana então, em algum momento, é atravessada pela angústia frente à falta.

Numa relação, por exemplo, quando as unidades imaginárias de satisfação total fantasiados caem por terra, o sujeito se vê livre para se haver com o seu desejo e com sua falta que o constitui. Esse texto é sobre a impermanência, sobre a falta, sobre limites.

Recentemente uma pessoa muito querida, me contou que uma folha de sulfite não poderia ser dobrada ao meio mais que seis vezes. Eu acreditei, mas senti a necessidade de buscar uma folha e fiz o teste, talvez na tentativa de sentir em minhas mãos a concretude do limite que me impediria em dobrá-la da sexta vez em diante. E isso me deu certa tristeza, mas também algum conforto em saber que eu não correria o risco de dobrá-la infinitamente, podendo até me machucar na tentativa de forçá-la, dobra após dobra. Na sexta dobra, encontrei a resistência e aceitei. A falta, o limite ou a tal da impermanência. 🌸

Em psicanálise, é o momento em que se tropeça na angústia, tal como um abismo. E frente a esse abismo que inscreve o término de algo que inaugura a impossibilidade do “para sempre”, o sujeito tem algumas opções. Paralização como negação, queda como desintegração ou voo como crescimento. 

Paralisar frente ao abismo e ser acompanhado pela melancolia, protelando o inegável, em hiância (intervalo entre o que não existe e o que está prestes a existir). Dobrando, se desdobrando, redobrando. Pode mergulhar no abismo, sucumbir e se decompor. 

Ou pode alçar voo da beira do abismo, movimento ascendente, que instaura em seu registro de sujeito descontínuo o real.

Nesse ponto, o sujeito percebe que não foi bem sucedido no enigma do desejo do Outro e no próprio desejo, demanda impossível de se realizar. “C’est le désordre.” Desordem da certeza como imperativo, o fim para definição as fixas, mas também para os prazeres estagnados. 

O encontro com um objeto inicialmente é apaixonante, porque se supõe um encontro de completude. Mas, com o tempo, o amor pode se revelar assim que se supera a idealização e se percebe que o que mais pode nos atrair em uma pessoa é a sua própria percepção daquilo que ela não é e que portanto, não pode nos fornecer. Essa é a melhor declaração de amor: dizer-se incompleto, insuficiente, falho, humano, liberto e portanto desejante.

É negar estar com uma pessoa, apesar do desejo, de encenar esse errôneo e fantasioso papel de completude.

É a abertura aos “sins” que permitem a transcendência, a um destino que não é dado ou esperado, mas “fatti a mano”.

É se permitir um eterno dialogar com o eterno retorno de Nietzche “Quero tudo mais uma vez e incontáveis vezes?“. E se questionar, se o caminho escolhido é resultado de uma resposta afirmativa ou do medo de enfrentar a realidade.

Aqui o “para sempre”talvez caiba ao seu incansável encontro com as descontinuidades da e na vida.

Mas também anuncia o encontro com seu Desejo em incontáveis possibilidades criativas. 

Eu entendo que existe uma falha estrutural na linguagem na qual estamos inseridos, que não permite uma justaposição entre o simbólico e o imaginário. E começo a confirmar que Lacan talvez tenha mesmo razão, ao bem recepcionar e hospedar a falta como fundante na invenção de sua poética teoria. Dando ao amor uma lógica que parte do impossível e assume sua paradoxalidade. Talvez o espaço de uma invenção singular possível.

Cito uma frase de  Irvin D. Yalom em Quando Nietzsche chorou, admitindo deixar esse texto em aberto: “Somente quando consegue viver como a águia, sem absolutamente qualquer público, você consegue se voltar para outra pessoa com amor; somente então é capaz de se preocupar com o engrandecimento do outro ser humano.” 

Andressa Dorothea, humana, psi, (…)

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